NOUSSANSEUX™ | BLOG

Menu
  • Home
  • LABEL
  • STORE
  • Sobre Nós
Home
Uncategorized
“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

NOUSSANSEUX™ NOUSSANSEUX™ août 1, 2022
“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

 Objecto oblíquo é um livro que fantasmagoriza a poesia, começaria por dizer.

Lembro o poema Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa e cito “A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente/ E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…”. De certo modo a evocação do poema faz-me pensar que a transversalidade de espaços citacionais e criativos em Objecto Oblíquo – em cruzamento – encaminha a construção do livro, do Objecto, ao perpassar obliquamente paisagens interiores/exteriores de escrita, em narrativa fragmentária.

Pergunta-se a poesia,  a morte, a orfandade; descubro em contraponto de leitura os nexos que me transportam do português ao shona, língua que surge  pela voz dos  cantores zimbabweanos Feli Nandi e Leonard Dembo, ou encontro em outro passo uma referência a Nina Simone, If I should lose you, conectando-se a um poema de T.S. Eliot; mais adiante uma ligeira referência ao inferno de Dante, no mapa sinaliza-se terra de Manica, Guindingui, bucólicas irónicas de Virgílio, ou Alguidar de Versos, incorporação, justaposição de planos, referência à encenação teatral de Venâncio Calisto.

Comecemos, a tentame: há uma abertura com um fragmento de poema de Denise Levertov que nos diz: “cinza, um lugar/sem contornos claros, o ar pesado e grosso/o chão macio entupindo meus pés se eu ando,/chupando-os para baixo se eu ficar de pé.// Você já esteve aqui?”.

Você vai estar aqui. Aqui no Objecto Oblíquo. Que lugar de escrita é este?

Organizado em três partes, com diversas sub-partes “Último Desejo”, “Átrio das Aves”, “O Enterro das Unhas” (nesta última parte a numeração ludicamente é inversa ao ritmo crescente, começamos de nove para um, para chegarmos criteriosamente/ao início e final), este livro encena uma certa surrealidade da arte de estar vivo, em permanente acesso à morte, em oximórico trapézio, numa linguagem que tributa a poesia de algum espaço narrativo. Aqui se trata de necrologia e de distopia, de criação, o pesadelo se alinha numa fácil fulguração com asas, sonho ou pesadelo? Viagens pelo cemitério, escolhendo o lugar, a lápide, o silêncio, o verso. Teatralidade. Poesia. Orfandade, declamação, rapidez, kukurumidza, a morte em orquestração trágica.

 Unherera ushe. Unherera umambo. Um pensamento imódico nos tímpanos de um miúdo de seis anos. Leonard Dembo não imaginou que estas palavras assombrariam o miúdo do planalto por anos. Levou-me anos para que pudesse tocar o assoalho desta metáfora. Dembo foi talvez o primeiro compositor que me pôs a pensar seriamente na morte.

Aqui, em Objecto Oblíquo,  se alternam duas dicções/ritmos, sabiamente orquestrados, a do poeta David Bene e a do narrador Mélio Tinga, que se respondem, alternando, escrevendo “o último desejo”, que acompanha “uma flor que não desabrocha”, a morte. O leitor , tal como eu, poderá ler este livro de diversas maneiras, por fragmentos, parágrafos, sobrepondo espaços sem rosto e vozes sem som, ou contrariamente ouvindo a música de Tracy Chapman em fast car, “a ticket to anywhere”, um bilhete para parte alguma:

O que é um trompete senão a construção dos sonhos, degrau a degrau, dedo a dedo, até que o universo esteja tecido por completo. Descubro comigo  mesmo que a literatura é um animal imortal, teimoso, que, ao mesmo tempo que nos acalenta a carne, nos rói por trás.

 Há poesia depois da eternidade? As crianças vão para o lado esquerdo. Os adultos para o direito. Mergulho na minha indecisão.

Convido-vos a ler este excelente engenho de articulação de escritas, de “crianças que voltam sujas do paraíso” com poesia nas algibeiras e fantasmagóricas pirâmides no canto do papel:

O inferno existe. Engano a todos com o poema. Não me arrependo. Se me desculpasse, quem ouviria? O submundo é uma caixa de fósforo. A voz do palito não conhece a aresta que não seja duma Impala. Esqueça-te dos remos, Caronte. A água é areia. Hereges, minha terra prometida. Saia do meu  joelho e mostra-me onde queres descansar. Os teus olhos estão mortos, Virgílio. O submundo é raso. Cócito ascendeu e aviva a Ponta Vermelha.

Arrumo as mãos na algibeira. A noite perdeu a asa e caiu de cócoras no quintal. As crianças voltam  sujas do paraíso. Futura esposa, em Tânger, queima a cebola no fogo de néon. Josué são cinzas na pá do necrotério. E o meu último desejo não existe.

Fonte: O País

Também poderá gostar destes artigos.

Share
Share
Tweet
Linkedin
Pinterest
Email
Google+
Prev Article
Next Article
Tags:Poesia

“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

NOUSSANSEUX™ NOUSSANSEUX™ août 1, 2022
“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

 Objecto oblíquo é um livro que fantasmagoriza a poesia, começaria por dizer.

Lembro o poema Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa e cito “A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente/ E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…”. De certo modo a evocação do poema faz-me pensar que a transversalidade de espaços citacionais e criativos em Objecto Oblíquo – em cruzamento – encaminha a construção do livro, do Objecto, ao perpassar obliquamente paisagens interiores/exteriores de escrita, em narrativa fragmentária.

Pergunta-se a poesia,  a morte, a orfandade; descubro em contraponto de leitura os nexos que me transportam do português ao shona, língua que surge  pela voz dos  cantores zimbabweanos Feli Nandi e Leonard Dembo, ou encontro em outro passo uma referência a Nina Simone, If I should lose you, conectando-se a um poema de T.S. Eliot; mais adiante uma ligeira referência ao inferno de Dante, no mapa sinaliza-se terra de Manica, Guindingui, bucólicas irónicas de Virgílio, ou Alguidar de Versos, incorporação, justaposição de planos, referência à encenação teatral de Venâncio Calisto.

Comecemos, a tentame: há uma abertura com um fragmento de poema de Denise Levertov que nos diz: “cinza, um lugar/sem contornos claros, o ar pesado e grosso/o chão macio entupindo meus pés se eu ando,/chupando-os para baixo se eu ficar de pé.// Você já esteve aqui?”.

Você vai estar aqui. Aqui no Objecto Oblíquo. Que lugar de escrita é este?

Organizado em três partes, com diversas sub-partes “Último Desejo”, “Átrio das Aves”, “O Enterro das Unhas” (nesta última parte a numeração ludicamente é inversa ao ritmo crescente, começamos de nove para um, para chegarmos criteriosamente/ao início e final), este livro encena uma certa surrealidade da arte de estar vivo, em permanente acesso à morte, em oximórico trapézio, numa linguagem que tributa a poesia de algum espaço narrativo. Aqui se trata de necrologia e de distopia, de criação, o pesadelo se alinha numa fácil fulguração com asas, sonho ou pesadelo? Viagens pelo cemitério, escolhendo o lugar, a lápide, o silêncio, o verso. Teatralidade. Poesia. Orfandade, declamação, rapidez, kukurumidza, a morte em orquestração trágica.

 Unherera ushe. Unherera umambo. Um pensamento imódico nos tímpanos de um miúdo de seis anos. Leonard Dembo não imaginou que estas palavras assombrariam o miúdo do planalto por anos. Levou-me anos para que pudesse tocar o assoalho desta metáfora. Dembo foi talvez o primeiro compositor que me pôs a pensar seriamente na morte.

Aqui, em Objecto Oblíquo,  se alternam duas dicções/ritmos, sabiamente orquestrados, a do poeta David Bene e a do narrador Mélio Tinga, que se respondem, alternando, escrevendo “o último desejo”, que acompanha “uma flor que não desabrocha”, a morte. O leitor , tal como eu, poderá ler este livro de diversas maneiras, por fragmentos, parágrafos, sobrepondo espaços sem rosto e vozes sem som, ou contrariamente ouvindo a música de Tracy Chapman em fast car, “a ticket to anywhere”, um bilhete para parte alguma:

O que é um trompete senão a construção dos sonhos, degrau a degrau, dedo a dedo, até que o universo esteja tecido por completo. Descubro comigo  mesmo que a literatura é um animal imortal, teimoso, que, ao mesmo tempo que nos acalenta a carne, nos rói por trás.

 Há poesia depois da eternidade? As crianças vão para o lado esquerdo. Os adultos para o direito. Mergulho na minha indecisão.

Convido-vos a ler este excelente engenho de articulação de escritas, de “crianças que voltam sujas do paraíso” com poesia nas algibeiras e fantasmagóricas pirâmides no canto do papel:

O inferno existe. Engano a todos com o poema. Não me arrependo. Se me desculpasse, quem ouviria? O submundo é uma caixa de fósforo. A voz do palito não conhece a aresta que não seja duma Impala. Esqueça-te dos remos, Caronte. A água é areia. Hereges, minha terra prometida. Saia do meu  joelho e mostra-me onde queres descansar. Os teus olhos estão mortos, Virgílio. O submundo é raso. Cócito ascendeu e aviva a Ponta Vermelha.

Arrumo as mãos na algibeira. A noite perdeu a asa e caiu de cócoras no quintal. As crianças voltam  sujas do paraíso. Futura esposa, em Tânger, queima a cebola no fogo de néon. Josué são cinzas na pá do necrotério. E o meu último desejo não existe.

Fonte: O País

Também poderá gostar destes artigos.

Share
Share
Tweet
Linkedin
Pinterest
Email
Google+
Prev Article
Next Article

Related Articles

Bantunani - nousanseux
    Composer, singer and producer, More than music, Bantunani …
NOUSSANSEUX™ NOUSSANSEUX™ juillet 23, 2022

Bantunani – THE NEXT GENERATION (Disco for peace)

Lucros da Apple caíram 10% no segundo trimestre
Lucros da Apple caíram 10% no segundo trimestre Os lucros …
NOUSSANSEUX™ NOUSSANSEUX™ juillet 29, 2022

Lucros da Apple caíram 10% no segundo trimestre

About The Author

NOUSSANSEUX™

NOUSSANSEUX™ C'est d'abord une équipe des producteurs,ingénieurs de musique, Auteur-compsiteurs, designer creative et Beat Markers . avec notre service de vente Merch de vêtement prêt à porte et le label de gestion & distribution . nous accompagnons des Jeunes artistes dans divers milieux culturels . Nous nous consacrons à un seul but, faire avancer votre carrière au niveau international à travers l'intermédiaire de nos outils, expériences artistiques et nos partenaires , playlister , curateurs , bloggers du monde entiers .

Leave a Reply

Annuler la réponse

Ultimas Postagens no Site

  • CONEXION by NOUSSANSEUX les Artistes Dévoilée
  • STRAYBOY – EX MORTIS Totalement disponible
  • N.O.L le SINGLE BOSS – DISPONIBLE
  • le nouveau jury de Nouvelle École sur Netflix sont dévoilé
  • ROSEX LEROYD – SAUDE MENTAL DESTRUIDA disponivel
Tweets by Noussanseux

NOUSSANSEUX™ | BLOG

Blog officiel du Label NOUSSANSEUX™
Copyright © 2023 NOUSSANSEUX™ | BLOG
Theme by NOUSSANSEUX™

Ad Blocker Detected

Our website is made possible by displaying online advertisements to our visitors. Please consider supporting us by disabling your ad blocker.

Refresh
NOUSSANSEUX™ | BLOG
Gerenciar Consentimento de Cookies
Para fornecer as melhores experiências, usamos tecnologias como cookies para armazenar e/ou aceder a informações do dispositivo. Consentir com essas tecnologias nos permitirá processar dados, como comportamento de navegação ou IDs exclusivos neste site. Não consentir ou retirar o consentimento pode afetar adversamente certos recursos e funções.
Funcional Toujours activé
O armazenamento ou acesso técnico é estritamente necessário para o fim legítimo de permitir a utilização de um determinado serviço expressamente solicitado pelo assinante ou utilizador, ou para o fim exclusivo de efetuar a transmissão de uma comunicação numa rede de comunicações eletrónicas.
Preferências
O armazenamento ou acesso técnico é necessário para o propósito legítimo de armazenamento de preferências não solicitadas pelo assinante ou usuário.
Estatísticas
O armazenamento técnico ou acesso que é usado exclusivamente para fins estatísticos. O armazenamento técnico ou acesso que é usado exclusivamente para fins estatísticos anónimos. Sem uma intimação, conformidade voluntária por parte de seu Provedor de Serviços de Internet ou registos adicionais de terceiros, as informações armazenadas ou recuperadas apenas para esse fim geralmente não podem ser usadas para identificá-lo.
Marketing
O armazenamento ou acesso técnico é necessário para criar perfis de usuário para enviar publicidade ou para rastrear o usuário em um site ou em vários sites para fins de marketing semelhantes.
Gérer les options Gérer les services Gérer {vendor_count} fournisseurs En savoir plus sur ces finalités
Ver preferências
{title} {title} {title}